Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Jornalista em Goa

É jornalista e tem 29 anos. Fernando Monte da Silva, descendente de uma família importante de Goa, faz uma apreciação muito geral à história e à actual realidade do Estado indiano de Goa. Para o também português, Goa está a perder identidade e tradição, muito por culpa, diz, dos hindis que vêm de outras cidades como Bombaím ou Nova Deli. Actualmente a desempenhar funções de relações públicas nos Jogos da Lusofonia, Monte da Silva, aconselha mesmo a quem quiser conhecer ainda um pouco da Goa do tempo português para se despachar pois daqui a 10 anos, a antiga colónia lusa será “como qualquer outro lugar na Índia”.

Fernando Monte da Silva - Foto: Gonçalo Lobo Pinheiro / Hoje Macau


Qual a sua ligação a Goa?

A ligação é familiar. Porque nasci cá e quase a totalidade da minha família está cá, tirando uns primos que moram em Lisboa. Gosto da maneira de como se vive em Goa. É como se diz em francês: “joie de vivre”. Na verdade, consigo ter uma forma de vida parecida com a que teria se estivesse em Portugal. Aqui também existe aquele calor humano, natural nos povos latinos.

Há quantas gerações é que os Monte da Silva estão em Goa?

Pelo que sabemos há treze. Somos goeses e fomos convertidos pelos portugueses. Essa é a verdadeira história das famílias goesas. Não concordo com o que se ensina nas escolas indianas que diz que os portugueses forçaram os indianos quando aqui chegaram. Penso que os indianos, na altura, foram convertidos de uma forma voluntária até porque os portugueses quando chegaram mostraram princípios e valores melhores do que aqueles que já existiam por cá. Por isso, muitas famílias acabaram por aceitar converter-se ao Cristianismo e adoptaram nomes portugueses, começando a falar a Língua Portuguesa. Foi isso que me foi transmitido dentro da minha família, geração após geração.

Sabe a razão dos ensinamentos de história não serem os mais correctos em relação a Portugal, como afirma?

Questões políticas, penso. Sei que o que aconteceu foi o contrário simplesmente porque existem até hoje, testemunhos escritos de pessoas que viveram naquela altura que mostram os factos como eles aconteceram. As pessoas que afirmam que a chegada dos portugueses à Índia não foi uma coisa muito agradável, ou são hindus ou são os políticos ou são as pessoas que acabaram por ser presos, por diversas razões, pelos governos portugueses. Disso há prova.

Pode afirmar, categoricamente, que a maioria dos goeses gostava dos portugueses?

Naquela altura existia uma classe muito alta, de elite mesmo, com capacidade de influência social e política, que sempre gostou mais dos portugueses. No nível mais baixo da população, as coisas não eram assim tão lineares porque eles achavam que os portugueses vieram para cá e prejudicaram a sua ascensão social e as oportunidades que existiam. A maioria das pessoas não sei se, de facto, gostava dos portugueses.

Mas, por exemplo, quando chegamos a Goa vemos que a população indiana gosta de cuidar dos edifícios antigos de traça portuguesa.

Atenção, o património está arranjadinho porque são as próprias igrejas que pagam esses melhoramentos e não o Governo de Goa ou até mesmo o Governo da Índia, como deveria ser sua obrigação uma vez que a maioria das igrejas e conventos são Património da Humanidade da UNESCO.

Curioso. E acha que destroem quando têm de destruir, ou pensam antes duas vezes?

Destruir não diria mas se a casa cai, a casa cai, se é que me entende. Aqui não se cuida de nada.

Outro dos patrimónios existentes é a Língua Portuguesa. Como é que uma pessoa como o Fernando, que ainda não tem 30 anos, fala tão bem português?

Isso acontece porque fui criado pelos meus avós, que falam fluentemente português e essa era a língua usada em casa. Para além, de todo o grupo de amigos também falarem português. Só falavam concani (língua falada em Goa) com os empregados domésticos e o inglês nunca equacionado. Aliás, o meu avô tinha uma frase célebre que era: ‘o inglês é língua para os burros e para os cavalos’ (risos). Portanto, o meu crescimento foi feito a aprender o português. O meu pai fala português e só por necessidade, muito por culpa da escola, é que comecei a falar fluentemente inglês e concani. A minha irmã também fala bem português.

Tem ideia de quantas pessoas da sua idade falam português em Goa?

Poucas. Talvez cerca de 20 pessoas. Penso que a minha irmã, que tem 24 anos, é a pessoa mais nova de Goa a falar português, actualmente. No geral, sem tendo dados oficiais para sustentar o que vou dizer, arriscaria que talvez 500 pessoas falam português em todo o Estado de Goa.

E os goeses, enquanto comunidade, onde é que se encontram? Convivem?

Passados estes anos todos, os europeus ainda não compreendem uma realidade que existe aqui na Índia que é o sistema de casta. A maioria é católica mas ainda assim guiamo-nos pelo sistema de casta. Como as classes mais altas de goeses não se misturam com as classes mais baixas não existem convívios ao nível que os europeus consideram normal. As pessoas encontram-se na missa, mas depois disso cada um segue a sua vida. E nem sequer conversam. Por aquilo que sei, até por força da minha experiência e vivência familiar, as classes de elite encontram-se em casa umas das outras e é assim que convivem.

Sendo um português em Goa, como é que vê o seu outro país?

Gosto. Já lá estive e não me importava de viver uns anos em Portugal. Tudo depende das oportunidades que surgirem na minha vida. Goa é a minha casa mas nunca digo não a Portugal. Apesar de tudo, uma experiência de vida num país estrangeiro, e neste caso em particular em Portugal, pode trazer uma boa perspectiva de futuro quando regressar a Goa. Aqui, como quase em toda a Índia, olham muito à tua experiência profissional, principalmente se essa experiência foi adquirida em países estrangeiros.

O Fernando não viveu esses tempos (Goa foi retirada aos portugueses em 1961) mas o que é que lhe contam os seus avós e pais. Como era viver aqui, no tempo dos portugueses?

Era fantástico. Mesmo na minha infância era muito diferente daquilo que é hoje e nasci 1984. Aliás, quando estive em Portugal há uns anos lembrei-me de Goa do tempo de quando era criança. A maneira de ser das pessoas, mais limpeza nas ruas, prédios remodelados, entre muitas outras coisas. Aqui, dia após dia, Goa vai-se tornando numa lixeira e é uma pena, pois isto era uma paraíso.

E qual é razão?

Penso que a culpa é das pessoas que vêm de fora. A cultura e a forma de estar na vida dessas pessoas é muito diferente daquela que, nós goeses, estamos e sempre estivemos habituados. A maneira de ser goesa é muito mais ocidental se compararmos a outras partes da Índia, portanto, é preciso que quem vem de fora, seja para trabalhar, seja para turismo, tenha a noção que Goa é assim e é preciso manter essa identidade muito própria, uma vez que o Governo nada faz para que esse cenário se altere.

E estes eventos de cariz internacional, como os Jogos da Lusofonia, são importantes para Goa?

Naturalmente que sim. Goa nunca realizou um evento tão grande como estes jogos. É a primeira vez que tal sucede e penso que a partir de agora não podemos parar. Goa tem de se tornar rapidamente numa plataforma moderna onde coisas importantes podem e devem acontecer. Estes Jogos da Lusofonia, apesar de alguma queixa por parte dos jornalistas, que até podem ter razão, estão a correr bem. Sendo a primeira vez que Goa organiza um evento tão grande, penso que as coisas positivas se estão a superar às coisas negativas. Tudo o resto que possa correr mal é alheio à organização.

Alguns governantes indianos chegaram a afirmar que a realização dos Jogos da Lusofonia em Goa traziam alguma lembrança do tempo do colonialismo. Quer comentar?

Acho que esse pensamento está completamente errado e demonstra ignorância. Este tipo de competições existem em todo o lado. Também não existe os Jogos da Commonwealth? Por isso não entendo esse tipo de conversas por parte das autoridades. Penso, aliás, que isso se trata de manobras de propaganda.

Que dirá a uma pessoa que queira visitar Goa?

Vale a pena visitar Goa nos próximos 10 anos. Estamos a perder a cultura típica de Goa e penso que no futuro, este lugar será mais uma cidade da Índia como outra qualquer. A não ser que o Governo tome alguma decisão a esse respeito, por forma a preservar a cultura goesa e o património deixado pelos portugueses, penso que o caminho será muito negro para a história de Goa. Existem muitos hindus em Goa e isso tem retirado especificidade à cultura goesa.

Não tem medo de ser chamado racista ou xenófobo com essas declarações?

Nada. Acho que cada lugar tem a sua identidade própria e Goa não foge a isso. A Índia tem também as suas próprias realidades, diferentes das de Goa, Damão ou Diu. Farto-me de dizer a um amigo meu de Bombaím que eles gozam quando vêm a Goa, simplesmente, porque a maneira de ser entre as duas realidades é diferente. Não há melhores nem piores. Há diferenças e essas diferenças têm de ser respeitadas.

Mudando de assunto. Como é que é ser jornalista em Goa?

Não é muito agradável porque os meios de comunicação pagam mal (risos). E por isso, muitos dos jornalistas que ocupam os diversos cargos nos diversos jornais são pessoas sem grandes estudos ao nível académico e, inclusive, sem educação social. Aliás, muitos deles nem sabem como se comportar em eventos de nível internacional como é o caso destes Jogos da Lusofonia e já assistimos a diversos casos. É preciso mudar o paradigma do jornalismo em Goa e talvez assim consigam contratar jornalistas de outro nível, com outros conhecimentos.

Qual é o seu futuro aqui? Pretende continuar em Goa?

Sim, com certeza. A minha ideia é continuar a viver em Goa porque se continuar posso tentar fazer a diferença. Antes de ser jornalista, o que quero mesmo é ser professor de jornalismo que é uma profissão muito bem remunerada, cinco vezes mais do que a de jornalista. É mais fácil ensinar, e terei todo esse privilégio que é o de transmitir às próximas gerações o que é o bom jornalismo e o que é ser um bom jornalista. Gonçalo Pinheiro – Macau in “Hoje Macau”

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