Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O Brasil que Portugal descobriu e o Portugal que descobriu o Brasil

Muito se discute sobre o papel dominante do Estado na política brasileira. Descuida-se, porém, de lembrar que esse é um componente estrutural que nos acompanha, sem ruptura ou superação, desde a descoberta por Portugal em 1500. No Brasil, o Estado sempre foi mais forte que a Sociedade. O Brasil que Portugal descobriu tem sido descrito a partir do arquétipo do Éden, o paraíso bíblico. O modelo edênico faz sentido. Uma terra virgem, de clima ameno, generosa na sua vegetação e nas águas, abundante em pássaros coloridos e desconhecidos, habitada por selvagens nus, de aparência agradável, em total comunhão com a natureza, pacíficos e curiosos, não poderia deixar de causar esta impressão nos europeus.

Tudo era tão diferente deles e das terras de onde provinham. Não porque os portugueses de 1500 desconhecessem outros povos. Há séculos combatiam os mouros nas cruzadas e na península ibérica; em 1415 invadiram Ceuta na ponta norte do Marrocos e ainda estava viva na memória a expulsão dos mouros do Algarve. Mas não foi apenas nas guerras que os portugueses travaram contato com outros povos não europeus. O príncipe D. Henrique começou a ver no interior da África não mais uma terra de hereges e sim um território misterioso, aberto ao comércio e à glória.

De volta a Portugal após a conquista de Ceuta, o infante impulsionou o grande projeto de exploração da costa africana por mar. A partir de então, as descobertas não terminaram mais: ilha da Madeira em 1420, Açores em 1432, e a compulsiva tentativa de ultrapassar o Cabo Bojador, a mais meridional das regiões conhecidas, cercada de superstições, e da suspeita de que ali se encontrava o fim do mundo. De 1424 a 1434 são quinze as expedições enviadas com este propósito, cada uma delas aproximando-se mais do objetivo, até que em 1434 Gil Eanes, chegando às proximidades do Bojador, mudou o curso, adentrando o Atlântico, e contornou o ameaçador limite.

O Bojador estava vencido. Eanes foi recebido como herói e as superstições e os temores caíram por terra. A partir desta conquista, os portugueses desvendaram a costa da África, sempre fazendo incursões ao interior. Cruzaram o Cabo das Tormentas ao Sul do continente, navegaram o Índico, chegaram à Índia, Malásia, Pérsia, China e Japão.

A visão edênica do Brasil, portanto, não se deve à ingenuidade portuguesa, ou ao seu espanto ao descobrir povos não europeus. Deve-se, isto sim, às condições da natureza e ao primitivismo dos seus habitantes. O indígena brasileiro estava muito distante, em termos de civilização, dos indianos, chineses, mouros, persas, e até dos africanos.

Aqui não se via a ação do homem transformando a natureza. Ao contrário, o homem a ela integrava-se como as plantas e os animais. Não se viam edificações. Os armamentos eram os mais rudimentares e os implementos domésticos os mais primitivos. Não havia nenhuma evidência de indústria nem nas roupas nem nos artefatos. Inexistiam templos, e os caminhos não se transformavam em estradas. Em suma, era o homem habitando uma natureza intocada. Não havia cidade a conquistar, fortaleza a derrubar, deuses e sacerdotes a destruir e subjugar, reis e autoridades a derrotar. Nas costas brasileiras, os portugueses descobriram o Éden.

Uma das nações mais poderosas, modernas e cosmopolitas do século XVI e, de mais precoce unificação, encontrou-se nos trópicos com a mais primitiva e menos “civilizada” das sociedades. Muito menos, por exemplo, do que as que a América espanhola descobriu no México e no Peru.

A história convencional não valoriza adequadamente o Portugal do início do século XVI, que descobriu o Brasil, entre tantas outras descobertas. Portugal, não obstante o seu tamanho, era, nos séculos XV e XVI, uma das nações mais modernas do mundo. Seu sistema de governo, desde o reinado de D. Pedro I (1357/67), caracterizou-se pela existência de monarquias fortes e guerreiras, que unificaram o país. Era uma corte de cavalaria, ao estilo medieval, que cultivava o heroísmo e as virtudes cristãs. No início de 1400, os jovens príncipes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique (o infante) estavam maduros para sua investidura na ordem da cavalaria. Ao contrário da festa com “justas” e torneios, o rei D. João redefiniu o “rito de passagem” dos novos cavaleiros em torno de uma “gesta nacional”: uma nova cruzada contra os mouros, agora no seu território. Em vez de jogos, festas e torneios, uma empresa militar nacional para eles provarem que mereciam “ganhar as suas esporas”.

O objetivo fixado foi Ceuta, na costa norte da África. A conquista de Ceuta estimulou expedições por terra e, mais importante, a decisão de explorar por mar a costa africana. O objetivo era alcançar a Ásia, numa época em que a rota por terra que levara Marco Polo da Europa ao Império Chinês havia sido interrompida. Definida a meta nacional, os portugueses, sob a liderança do infante D. Henrique, iniciam uma verdadeira revolução nas áreas de cartografia e engenharia naval. Os portugueses levaram adiante a tradição dos “portulanos” – mapas detalhados das costas do Mediterrâneo e da Europa do Norte –, estendendo-os para a costa da África. Ao mesmo tempo, desenvolveram a caravela de vela latina: barcos de dois a três mastros, com aproximadamente 20 metros de comprimento e 60 a 70 toneladas de peso.

Na escola de Sagres, ponto de encontro entre homens do mar, cartógrafos, geógrafos e inventores, surgiam os projetos de exploração da costa africana que impulsionaram as descobertas. Este Portugal aventureiro reunia militares e navegadores que fizeram das descobertas o seu projeto de vida. Foram bancados pela Coroa Portuguesa por mais de um século, sem solução de continuidade, não obstante a sucessão de reis que ocuparam o trono no período.

Para citar apenas os mais conhecidos, por lá passaram homens como Gil Eannes, Diogo Cão, Gonçalo de Souza, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Diogo Dias, Duarte Pacheco Pereira, Afonso de Albuquerque, Francisco de Almeida, Fernão de Magalhães, João Coelho, Martim Afonso de Souza. Circulavam o globo terrestre com suas caravelas e seus mosquetes. Queriam descobrir, conquistar, colonizar e cristianizar. Correspondiam, no seu tempo, aos modernos executivos de uma poderosa multinacional de hoje. Homens de confiança dos governantes, competentes e experientes, sem raízes fixadas numa vida convencional, sempre dispostos a fazer-se ao mar a serviço dos interesses nacionais e da glória pessoal.

Muitos destes nomes fazem parte da história do Brasil, como fazem também da história de Guiné, Costa do Ouro, Madagascar, Congo, Angola, Moçambique na África, Cochin, Goa, Calicut, Cananor, Colombo na Índia, Malaca, e finalmente Cantão e Macau na China. O ponto importante a ressaltar é a capacidade de Portugal propor-se objetivos nacionais, disponibilizar os meios físicos e organizacionais para implementá-los e revelar a persistência e a vontade política de uma elite política para alcançar o objetivo que definira. Esta era uma condição singular, quando comparada com outras nações europeias à época. Portugal avançara para o patrimonialismo enquanto as nações daquela Europa permaneciam enredadas nos conflitos do feudalismo.

Foi este país que em 1500 aportou no edênico Brasil. Portugal era capaz de fazer frente a impérios asiáticos e ocupar e manter territórios, dominando a mais moderna tecnologia de navegação da época, militarmente aguerrido, habituado a lidar com estrangeiros e a com eles negociar. Foi um encontro de extremos: o extremo da modernidade com o extremo de uma sociedade primitiva, natural e ingênua. É deste encontro que nasce o Brasil. Nele se produzem as marcas de nascença que vão nos acompanhar ao longo da história.

Mas o Portugal que veio ao Brasil era o Estado português, que aqui chegou antes da sociedade, a bordo de suas caravelas. Este fato vai marcar toda a nossa evolução histórica ao originar o paradigma do Estado hegemônico, que preside a nossa evolução histórica até os dias de hoje. Francisco Ferraz – Brasil in “Revista Voto”

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