Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 13 de março de 2016

Brasil - O fado que chegou ao Amazonas

Eis aqui a saga heróica de um tripeiro que salvou um bucheiro, uma criança que se afogava no rio Negro, mergulhando em suas águas profundas, com risco da própria vida.



















Colunista conta a ocorrência de um ato heróico
“Este meu Porto tripeiro / berço de tantos heróis
viu uma nesga do rio / e quis o resto depois”.
Fado cantado por Maravalhas (1927-2016)



Desocupado leitor, eis aqui a saga heroica de um tripeiro que salvou um bucheiro, uma criança que se afogava no rio Negro, mergulhando em suas águas profundas, com risco da própria vida. Bucheiro, em “amazonês”, é quem nasce em São Raimundo, bairro que sedia o Matadouro Municipal de Manaus. Tripeiro designa, em “portoguês”, os nativos da região do Porto, norte de Portugal – berço de tantos heróis entre os quais D. Henrique, o Infante Navegador e José Fernandes Gomes Novo, o Maravalhas, cuja missa de sétimo dia foi celebrada na passada quinta-feira (18).

O nosso herói nasceu em Póvoa de Varzim, mas viveu ali pertinho, no Porto, onde bebia vinho e comia tripa de vitela com chouriço e toucinho. Até que um dia, em 1946, viu uma nesga do rio Douro, cruzou a Ponte das Barcas que liga as suas duas margens e quis o resto. Pegou um navio e mudou de mala e cuia para Manaus às margens do rio Negro. Trazia na bagagem seus 19 anos, uma bela voz de cantor de fados e o apelido com vários significados – apara de madeira, cavaco, pau pequeno – mas o nome Maravalhas – acreditem – se inspirou na lasca da madeira serrada na oficina de carpintaria onde trabalhou ainda menino, o que descarta qualquer especulação maledicente.

Marias Papoilas

Há outra versão. O apelido – diz seu compadre José Campos – é antigo e tradicional, vem de longe, da família, o que é confirmado na tese “Imprensa, Política e Etnicidade: portugueses letrados na Amazônia (1885-1936)” defendida por Geraldo Sá Peixoto Pinheiro na Universidade do Porto, em 2011. A tese reproduz carta ao etnógrafo Geraldo de Macedo Pinheiro de 1º de julho de 1958 enviada pelo poeta poveiro Admário Maravalhas, mencionando Antônio Maravalhas e outros pescadores e catraieiros poveiros que migraram para Manaus muito antes, em 1888.

Conheci o nosso Maravalhas no bairro de Aparecida, palco de tudo o que aconteceu no mundo ou ainda vai acontecer. Ele morava na Bandeira Branca e trabalhava com o pai, responsável pela atracação dos navios no Ródo, o porto de Manaus. Quando o navio apitava, os dois iam ao seu encontro, o amarravam a um motor com um cabo de aço, rebocando-o até o cais. No fim de semana, porém, Maravalhas era poeta, cantor e artista. Cantava fados na Rádio Baré e no Luso Sporting Club, do qual foi diretor, e onde disputava o título de melhor ator com João Bosco Araújo, o cão do Luso.















O sucesso como fadista gerou convites de outros clubes: Olímpico, Ideal, Rio Negro, Sheik, Maloca dos Barés e do grupo de danças folclóricas lusas do comandante Ventura, que se apresentou no Teatro Amazonas com as marias papoilas – Regina, Helena, Angela e Stella – as filhas da mãe, que por acaso compartilham comigo a mesma genitora, dona Elisa. Elas dançavam e cantavam com Fátima Buchinho, Neide Toscano, Mário Toledo e outros. Gina se lembra como se fosse hoje o Maravalhas cantando Marinheiro português:

Lá vão elas / naus do infante a navegar / Brilha a luz das caravelas / Sobre as ondas do mar.

Solidariedade tripal

– Durante a semana, Maravalhas era trabalhador braçal, mas aos domingos, quando não jogava futebol pelo Olímpico, vestia terno de linho branco, gravata e chapéu panamá e ia passear no Ródo, o shopping da época – conta o ex-prefeito de Manaus, Serafim Corrêa (PSB). Foi justamente num desses passeios na companhia do pintor Moacir Andrade, também morador de Aparecida, que Maravalhas mostrou seu heroísmo numa tarde quente do ano de mil novecentos e cinquenta e lá vai poeira.













Nesse dia, os irmãos Pedro, Paulo e Kid Queiroz flanavam pelo Ródo com família e amigos bucheiros para comemorar a primeira comunhão de várias crianças, quando uma delas – Jurandir ou Irandir – escorregou, caiu na água e desapareceu. Todo mundo gritou diante da iminente tragédia e, de repente, o tripeiro Maravalhas, honrando a tradição heroica de além-mar, num gesto generoso de solidariedade tripal, pulou no rio com chapéu e tudo, mergulhou e resgatou o bucheirinho são e salvo. Trouxe-o nos braços e quando vinha subindo a escada lateral, o pintor Moacir puxou um coro:

– Viva Maravalhas, o nosso herói!

Um herói ensopado, com o terno de casemira inglesa estragado, o chapéu perdido no fundo do rio e os sapatos de camurça com sola grossa avariados. Alguém perguntou por que não havia, pelo menos, tirado o chapéu e os sapatos antes de se atirar no rio. Sorriu sem graça, entregou o garoto aos pais, enquanto a multidão aplaudia e Moacir Andrade continuava berrando:

– Herói, herói!

Foi ai que ele se aproximou do Moacir e lhe disse bem baixinho:

– Herói é o c’ralho! Quem foi o filho da puta que me empurrou no rio? Eu ia salvar o garoto, não precisava me empurrar, seu porra.
























Há testemunhas de que quem empurrou foi mesmo o Moacir, que está vivinho da silva e pode dar a sua versão. De qualquer forma, por esse e outros feitos, Maravalhas recebeu o título de Cidadão do Amazonas concedido pela Assembleia Legislativa por iniciativa do deputado Maneca, numa sessão em que o agraciado, em vez de discurso, abriu o vozeirão para cantar seu fado preferido “Foi Deus”, da Amália Rodrigues, que faria inveja ao António Zambujo:

Fez poeta o rouxinol / Pôs no campo o alecrim / Deu as flores à Primavera /Aaaaaaaaaai, deu-me esta voz a mim.

Depois da sessão convidou o distinto público para comer um senhor bacalhau e tripas à moda do Porto no bairro de Aparecida, onde sempre morou, ultimamente num prédio que construiu na rua Alexandre Amorim.

Casado com dona Alice, teve três filhos: Constância, médica, reside em São Paulo; Frank, administrador de empresa, ficou em Manaus; Izabel, psicóloga, mora agora em Póvoa de Varzim, com quem ele foi passar o carnaval e revisitar o seu torrão natal. Recolheu seus passos, olhou a nesga do rio e cruzou de volta, pela última vez, a ponte sobre o Douro. No dia 11 de fevereiro, deu adeus ao Porto tripeiro e morreu aos 89 anos na cidade onde nasceu. Faz parte da migração lusitana que se acabocou, que nos ensinou a amar o melhor de Portugal e que nos deixa saudosos. O bairro de Aparecida perde seu herói. Ele ia pular. Não precisava o Moacir empurrar.

P.S. Minhas dispersas lembranças foram reavivadas por Serafim Corrêa e por seu Campos da Usina de Beneficiamento de Castanha dos Benzecry, em Educandos. Ele e dona Creusa, de quem Maravalha, padrinho de Fátima, é compadre, foram entrevistados pelo Tuta e Regininha, a quem agradeço, assim como às marias papoilas que trouxeram histórias, fotos e música. Ao Geraldo Pinheiro, a brilhante tese é sempre uma fonte de consulta. Bessa Freire – Brasil in “Direto da Redação”



José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.


Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.

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