Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Em busca das raízes no Brasil profundo

O homem, através dos tempos, sempre sonhou com o retorno às suas raízes, ou seja, à terra de seus pais e avós ou mesmo ao local onde nasceu e de onde saiu para ganhar o mundo. Talvez tenha sido assim desde a Antiguidade, como se pode ler em A Odisseia, grande obra clássica e épica do poeta grego Homero (século VIII a.C.), que conta a história de Ulisses (Odisseu), rei de Ítaca, ilha supostamente localizada no mar Jônico, que seria casado com Penélope e tinha um filho, Telêmaco.

Quando Páris, príncipe troiano, raptou Helena, a mulher mais bela do mundo e esposa de Menelau, rei de Esparta, preparou-se uma expedição contra Troia, na qual Ulisses tomou parte ativa. Durante os dez anos do cerco a Troia, Ulisses teve um papel decisivo. Depois, com as feridas cicatrizadas, levou mais dez anos para retornar a sua Ítaca, onde estavam suas raízes, a pátria de seus sonhos. Mas o importante da história não é o seu retorno, mas a longa e sobressaltada viagem que fez para voltar para casa.

Com isso, parece que Homero queria dizer que todo homem sempre sonha com o seu retorno às raízes, o eterno retorno, de que dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Se tudo retorna eternamente, o futuro já é um passado; e o presente é tão passado quanto o futuro, dizia o filósofo. Em Assim Falou Zaratustra (1883-85), Nietzsche retoma a ideia do devir formulada por Heráclito (535a.C-475a.C), segundo a qual tudo flui, tudo muda, tudo passa e tudo retorna,  girando assim a roda deste mundo.         

Em A insustentável leveza do ser, Milan Kundera conta que, certa vez, ao folhear um livro sobre Adolf Hitler (1889-1945), emocionou-se com algumas fotos do ditador, pois lhe lembravam o tempo de sua infância. “Essa reconciliação com Hitler trai a profunda perversão moral inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente permitido”, escreveu.

Já o filósofo romeno Mircea Eliade (1907-1986), em O mito do eterno retorno, lembra que este mito existe em todas as religiões, pois reconstitui a passagem do tempo, o percurso entre o começo e o fim, a vida e a morte. Para Eliade, ao narrar um mito, reatualizamos, de certa forma, o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos, como diz em Imagens e símbolos (1961) É esse tempo sagrado que nos ficou na memória que, de certo modo, todo homem procura reconstruir, ao buscar suas raízes.

Foi, aliás, o que este crítico procurou fazer em janeiro de 1990, quase quarentão, depois de entrevistar o escritor catalão Eduardo Mendoza, em Barcelona, para um trabalho de mestrado na Universidade de São Paulo (USP), ao viajar de trem até Vigo, na Galiza, e de lá de caminhoneta rumo ao Porto, para no dia seguinte buscar na freguesia de Carvalhosa, comarca de Paços de Ferreira, no Norte de Portugal, o lugar de Peias e possíveis vestígios da sua família paterna, 60 anos depois que seu pai largara aquela terra para nunca mais vê-la. Levado por um parente compungido, conhecido no local e na hora, porém, o que encontrou foram só os retratos dos avós numa lápide do cemitério do vilarejo, imagens que já trazia na lembrança, pois eram as mesmas fotografias que costumava ver nas mãos do pai, que perdera aos 14 anos de idade.

De certo modo, é o relato de viagem semelhante, ao interior de si mesmo e, portanto, de volta às raízes, o que o leitor vai encontrar em Choro por Ti, Belterra!, narrativa de Nicodemos Sena, publicado originalmente como folhetim em 2014 no jornal O Estado do Tapajós, de Santarém do Pará, na Amazônia brasileira, cidade natal do escritor. A diferença é que Nicodemos Sena teve a oportunidade (e a felicidade) de, cinquentão, em 2014, levar o pai Bernardino Sena, então com 78 anos de idade, para ver o que restara, mais de seis décadas depois, do lugar em que vivera “cinco inesquecíveis anos de sua vida juvenil”.

Em 19 episódios, Nicodemos Sena reconstitui o dia em que fez essa viagem de retorno às origens em companhia de seu pai, depois de um percurso de algumas horas pela rodovia Santarém-Cuiabá, até entrar numa estradinha de terra que leva à Estrada Um e, enfim, às ruínas da cidadezinha de Belterra, que na década de 1940 fora dirigida pela Ford Motor Company, empresa do magnata norte-americano Henry Ford (1863-1947), que, em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tentaria fazer da extração da borracha uma atividade lucrativa, fornecendo os pneumáticos necessários para movimentar os veículos militares.

Não se pode dizer que se trata de um romance nem tampouco de um conto que se tenha derramado por causa de uma prosa poética. Não é também uma simples reportagem, pois não constitui a mera literalização dos acontecimentos de um dia na estrada. Neste caso, cada encontro no caminho com esporádicos moradores perdidos naquelas paragens do Brasil profundo serve como motivo para um ou mais comentários, como aquele episódio em que o cronista depara-se, em meio ao tórrido calor do meio-dia amazônico, dentro de um casebre em que não havia água encanada e muito menos tratada, com uma menina que não parava de manipular a tela de um telefone celular.

É, isso sim, um texto híbrido que se assume como uma crônica repassada de lirismo, uma narração das vicissitudes vividas pelo narrador em companhia do pai, que faz, com a ajuda do filho, uma viagem de retorno à infância para reencontrar todos os fantasmas que ainda assolam seus pensamentos.

Ou ainda uma narrativa poética que, ao reunir musicalidade e metaforização, faz com que o narrador desfie o novelo da memória, em tom de conversa com o leitor em que não dispensa nem mesmo citações de autores, como o português Fernando Pessoa (1888-1935), o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), o mexicano Juan Rulfo (1917-1986) e o norte-americano William Faulkner (1897-1962). Como se sabe, o que une esses autores de nacionalidades tão distintas é a construção metafórica de um lugar mítico, que existe só na alma do próprio autor, como “o rio da minha aldeia” do heterônimo pessoano Alberto Caeiro. Em resumo, o texto dialoga com o mito do eterno retorno, ao praticar a intertextualidade com discursos canônicos, reconstruindo, dessa forma, metáforas da precária condição humana.

Autor de livros que já se tornaram referências obrigatórias dentro da Literatura Brasileira, como os romances A espera do nunca mais (1999), A noite é dos pássaros (2003) e A mulher, o homem e o cão (2009), trilogia que constitui uma saga amazônica, Nicodemos Sena mostra em Choro por ti, Belterra! que pode ser também considerado um cronista da estirpe de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Rubem Braga (1913-1990) ou Fernando Sabino (1923-2004).

A diferença é que, em vez da fugacidade dos registros do cotidiano das ruas do Rio de Janeiro que se leem nas crônicas daqueles grandes mestres, o que o leitor descobrirá nestes episódios é não só Amazônia que é vista ainda como exuberante paraíso tropical, mas também aquela que governantes corruptos permitiram que continuasse a ser destruída, tomada por aventureiros “gananciosos e cruéis, os quais, sem escrúpulos, saqueiam e depredam os bens da terra, auxiliados por ‘mucamas’ e ‘mordomos’ (degenerados filhos da terra) que, a troco de migalhas e posições, passaram-se para o lado dos inimigos”. Adelto Gonçalves - Brasil


Nota: Apresentação escrita especialmente para o livro Choro por ti, Belterra! (págs. 7/11).

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Choro por ti, Belterra!, de Nicodemos Sena, com apresentação de Adelto Gonçalves. Taubaté-SP: Editora LetraSelvagem, 192 páginas, R$ 30,00, 2017. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br


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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros.

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